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A exposição Vitruvius Mozambicanus, patente no CCB entre 18 de Maio e 16 de Agosto deste ano, foi uma devida celebração da obra de Pancho Guedes. Sendo organizada pelo filho, Pedro Guedes, não se tratava de uma mostra “crítica” ou motivada por um projecto curatorial exterior à sua obra. Era essencialmente a exibição de uma colecção de artefactos, ao modo torrencial de Pancho. Exagerando, como aqui é suposto, dir-se-ia que evocava as Antichità Romane de Piranesi: um amontoado de objectos em ordem frenética, quase em catadupa. Vitruvius Mozambicanus não seleccionava nem propunha leituras ou colocava em perspectiva, como dizem os ingleses. Aliás, não há propriamente “perspectiva” em Pancho: à maneira cubista, o objecto – a arquitectura – desliza pelo tempo e, à superfície, emergem pistas breves, recortadas e episódicas. Le Corbusier, Gaudí, Kahn ou Wright surgem do mesmo modo que em Le Portugais (Georges Braque, 1911) antevemos letras ou a forma da guitarra. As arquitecturas dos mestres funcionam como sinais figurativos, reconfortantes e idílicos, numa obra tomada por um tempo cíclico, de falso retorno, de falsa progressão, de perpétua ramificação. Corresponde a uma espécie de fim da história pressentida por Pancho nos anos de 1950/60: não há para onde ir; há só a performance do caminho. Daí o vitruvius em transe; em precipício; coleccionando borboletas.   

Nesse sentido, a exposição movia-se pelo zelo da própria obra de Pancho: desconcerto das expectativas num ziguezague absoluto; o desmentido, hoje, da afirmação de amanhã. O fio condutor de Vitruvius Mozambicanus era: não há fio condutor. Há só electricidade. 

Pancho quer ser irredutível e electrizar. Não lhe interessa ser reduzido a uma narrativa; quer que apanhemos choques. Por isso, não havia na exposição altos ou baixos, crítica ou autocrítica; as obras eram todas primas, relacionadas, em família.

Desde logo, não se faziam notar diferenças na apresentação dos projectos construídos, destruídos ou na gaveta. (Dir-se-ia, aliás, que a gaveta é o lugar electivo da obra de Pancho.) A pintura e a escultura seguiam juntas; o original, o epigonal e a cópia iam de mãos dadas. Ainda mais extenuante: nos projectos dos anos de 1960, o tempo do futuro dos Archigram podia emergir entrelaçado com o tempo do passado de Louis Kahn.

Dizer “ecléctico” é pouco. O eclectismo pressupõe uma ordem relativa e uma nostalgia da totalidade. O entrelaçamento da obra de Pancho dificulta a leitura das partes; como num sonho, as histórias misturam-se e as personagens sobrepõem-se. E este mais-do-que--eclectismo não se move em perca; pelo contrário, é celebratório e acelerado.

Contudo, apesar dos esforços de Pancho, não é impossível ler as matrizes fundamentais da sua abordagem. Inscreve-se na esfera mais livre e iconoclasta do Team 10, como já pude notar1, entrelaçada com a liturgia Dada, como proponho no catálogo da exposição2. O Dada enquanto refluxo da vanguarda moderna e o Team 10 enquanto saída do Movimento Moderno. Nas suas diferentes circunstâncias são ambos movimentos de desarrumação e des-amarração do moderno e é isso que motiva Pancho, centralmente. O tempo longo para lá do tempo do novo; o figurativo para lá do abstracto; a subversão do racional para lá da clarividência das vanguardas.

Vitruvius Mozambicanus mostrava a megalomania de Pancho, não no plano vertical como é habitual – em que o arquitecto surge como ditador do estilo –, mas num plano horizontal e labiríntico, em que se movem e entrelaçam vários estilos.

Em última análise, no entanto, é talvez no plano político que a reflexão sobre a obra de Pancho nos pode levar mais longe. É talvez aí que é mais ressonante e controversa. Porque é testemunho fixado, em ruína ou na gaveta, de uma hipótese de colonização interpeladora, vibrante e misteriosa. Visitando Maputo, ou passeando na exposição, assistimos a um processo de irrisão, feita do lado de lá, dos modelos ocidentais da arquitectura moderna. Vitruvius Mozambicanus mostrava a insurreição – ou, pelo menos, a iconoclastia – do colono face aos modelos de colonização. E dava-nos, por isso, um tempo especular e complexo: onde a miscigenização, sem o politicamente correcto, conflui com a cultura ocidental, sem o respeito das regras. 

Mas este é também um espaço perdido. Pancho ficou aprisionado num espaço/tempo que acabou: um sítio já sem lugar, uma eterna ex-colónia, uma província ultramarina. O ressentimento é quase sempre vencido pelo humor e Pancho ri-se desde o Leão que Ri, e talvez até já se risse antes. Com a arquitectura. Não preciso de explicar como é difícil rirmo-nos com a arquitectura.  

Sendo uma exposição antológica sem uma expressão curatorial vincada, Vitruvius Mozambicanus foi uma convocatória para futuras reflexões. A obra de Pancho, o que significa nos vários planos que atravessa, tem sido marginal na cultura arquitectónica portuguesa.
Até ao número de 1985 da Arquitectura Portuguesa, com o mesmo nome desta exposição no CCB, a crítica ignorou particularmente o trabalho de Pancho. Nos últimos anos, várias iniciativas que culminam nesta exposição têm-no aproximado do centro. 

De facto, Pancho tem sido periférico na história politicamente correcta da arquitectura portuguesa – apesar de se tratar do primeiro arquitecto contemporâneo a ser publicado no estrangeiro (Architectural Review, 1961); de ser o único arquitecto português que se move na área do Team 10; de ter sido apresentado por Tristan Tzara em 1962; de ter uma exposição na Architectural Association em 1980, etc., etc. Mas se é marginal aqui é central no desenho fabuloso dessa perdição que foi a África portuguesa.  

Na inauguração da exposição, Peter Cook deu uma conferência e Malangatana falou e dançou. E é essa geografia expandida que abre as fronteiras da arquitectura portuguesa e nos faz avançar e regressar anos-luz.|

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1 Cf. Jorge Figueira. A mão que embala o berço: Pancho Guedes dentro e fora do Team 10. In Pancho Guedes; Ricardo Jacinto. Lisboscópio, Portuguese official representation: 10. Mostra Internazionale di Architettura. Lisboa : Instituto das Artes, Corda Seca, 2006, p. 99-107. 

2 Cf. Jorge Figueira. O Projecto Sonâmbulo. In Pancho Guedes. Vitruvius Mozambicanus. Lisboa : Museu Colecção Berardo, 2009, p. 276-283

 


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